O Gigante Adormecido
- Rafaela Chor
- 29 de set. de 2020
- 5 min de leitura
A vida me ensinou aos poucos a apreciar as riquezas que vêm numa temporada quase eterna de chuvas. Eu sempre via a beleza no pisar dos pés nas poças d’água que tornavam a virar riachos para os meus barcos de papel, mas eu não dizia a ninguém, afinal, quem acharia que uma garota da minha idade veria beleza em algo tão simples em contextos tão gélidos.
Cresci com a pulga atrás da orelha para saber o que havia por trás dos muros que impediam as pessoas de enxergarem o que poderia ser o cenário mais bonito, como um jardim com vários dentes de leão, ou então algo mórbido como um corpo em decomposição.
É claro, que onde cresci, eu não pude contar com muitas paisagens agradáveis aos olhos, já que o inverno era constante, e as temperaturas não costumavam agradar a pele, quanto mais o que havia debaixo dela. Houve um tempo em que o sol brilhava mais que o costume, foi quando a grande montanha ainda não havia crescido entre as duas cidades.
Meu avô me disse que a montanha, essa, que parece com um corpo de um homem deitado, que eu apelidei de Gigante Adormecido, cresceu por conta da falta de comida na cidade, o que parece um pouco irônico, pois a única parte que podemos vê-la crescer é onde ficaria a barriga.
Diz ele, que após a guerra que tomou conta entre essas duas cidades, todos ficaram com pouco abastecimento de comida e materiais pela falta de mão de obra, causando ao longo dos anos, mais mortes que o próprio conflito. Até hoje, não se sabe o motivo exato que iniciou a batalha entre as cidades que já foram tão amigas, Timêmo e Tiguá.
Há boatos que a cidade de Tiguá havia parado de consumir os vegetais, pois o clima não estava propício para a agricultura, na época, a seca era constante e pessoas morriam de fome pela escassez de seus produtos. Já a cidade de Timêmo, havia investido na pecuária, e sua criação de gado estava lentamente morrendo pela falta de alimento. Foi quando Tiguá decidiu que em troca de um pedaço de suas terras, que ainda havia mato verde para o gado pastar, eles receberiam uma quantidade de carne diária para manter a população alimentada.
O acordo funcionou por algum tempo, mas os moradores reclamavam que o gado estava muito magro, e que a quantidade de carne não sustentava nem as crianças, e que pretendiam tomar seus campos de volta para tentar plantar inhames e feijões. A cidade de Timêmo não gostou nem um pouco da atitude, e reclamava que o gado estava magro porque não havia pasto o suficiente, e que se eles quisessem comer melhor, teriam que ceder mais terras para que pudessem alimentar a todos.
Nenhuma data foi marcada para o conflito, mas naquele dia, todos levantaram de suas camas com narizes torcidos e punhos fechados. Nada precisou ser dito. As crianças foram trancadas nos porões para que não presenciassem nada referente ao banho de sangue. Os jovens foram encarregados de afiar as lanças e afivelar as armaduras dos que tomariam a linha de frente.
Os adultos decidiram batalhar por seu povo com sangue nos olhos, e ao som do ranger dos dentes, seguiram a jornada até o local do encontro, que hoje se localiza na barriga do gigante. Os idosos se encarregaram de assistir a tudo atentamente para contar as histórias nos anos seguintes, eles não sairiam de suas cadeiras de balanço nem se alguém os pedisse. Por muito tempo, acreditava-se que eles eram os inimigos do povo por não querer entrar numa batalha em que ambos os lados poderiam sairiam perdendo.
Hoje, acredito que eles foram os mais sensatos em toda essa história.
Ao chegar na barriga, os dois povos se entreolharam como se o espírito do amargor tivesse tomado conta de seus corpos, ninguém disse uma palavra. As duas populações seguraram com força suas armas e deram o primeiro passo num movimento sincronizado, e segundo o meu avô, parecia que o movimento havia perdurado por vários segundos.
Os punhos se encontraram muito antes das lanças darem seu primeiro golpe, parece que alguma força havia as levantado para cima numa tentativa de suspender as agressões. Convenhamos, que o ataque direto do punho quente é mais difícil de ser efetuado do que o da lança feita de matéria morta que lhe foi entregue por sei lá quem.
O sangue naquele dia escorreu pelas duas cidades, fazendo com que ele irrigasse todo o pasto pelo qual duelavam. O gado se escondeu nos estábulos sem precisar que alguém lhes desse ordens. As nuvens densas nunca chegaram àquela região, e assustou a todos os animais. Quando a primeira gota de chuva caiu, podia-se ouvir um estrondo vindo da montanha, e era algo que as crianças nunca tinham ouvido em seus anos de vida. Os jovens questionavam se aquilo era realmente o que pensavam, e os idosos corriam suas próprias chuvas através dos olhos.
Depois do estrondo, nada mais se ouviu. Por dias, os residentes esperavam seus companheiros e familiares voltarem da guerra, mas nenhuma pegada foi impressa no chão. As crianças abriram as portas de seus abrigos e se banharam na chuva pela primeira vez. Uns choravam incomodados com a cor do céu e com a temperatura da água, outros se distraíram com as poças que se formavam no chão e viam graça em seus reflexos, esquecendo de tudo que os cercava.
Nada mais cresceu naquelas terras. Com o passar do tempo, era possível ver que o gigante aumentava, e que sua barriga era a única coisa que crescia naquele lugar agora amaldiçoado pelas chuvas incessantes. O pasto regado pelo sangue viu seu último dia de vida quando durante a batalha, um dos moradores foi ferido, e se protegeu nos galhos de uma árvore, essa, que foi derrubada pelo resto dos homens para poder alcançar o rival. A grama escureceu e nunca mais tivemos um dente de leão para soprar.
Eu não cheguei a soprar os dentes de leão, mas meu avô disse que eram como soprar o sol e vê-lo espalhar os raios pelo mundo. Pelo menos ainda me lembro do sol.
Os idosos disseram que ninguém voltou ao lugar do ocorrido para ver a cena, mas acreditam que a terra ficou furiosa com a ganância do homem, e decidiu engolir a todos os que estavam presentes no local. A cada dia, um corpo era levado para dentro da terra, e com isso a montanha aumentava. Para respeitar a natureza, eles tinham que voltar a ser natureza, e só poderiam retornar depois que aprendessem suas lições individualmente.
Nunca vi ninguém voltar do morro, acredito que ainda estejam se desenvolvendo para que possam retornar às suas famílias. Hoje, faz vinte e cinco anos do conflito, e os idosos que ficaram de contar as histórias fizeram um ótimo trabalho a ensinar nós, as não mais crianças, sobre o que levou a terra a nos dizer “basta”.
A cada vez que um idoso falecia, a montanha permanecia a mesma. Quando foi a vez do meu avô, eu podia jurar que vi um pedacinho do sol aparecer por trás da cabeça do gigante, apesar de ninguém acreditar em mim. Logo eu, que vejo graça nas poças, e que recolhe água das chuvas para tomar banho, mesmo que seja dentro de casa, com medo de alguém ver.
Eu vi um certo brilho saindo perto da orelha, e eu tenho certeza de que aquele era o dente de leão que eu nunca pude ver com os próprios olhos. Meu avô sempre me disse que às vezes os olhos enxergam aquilo que a gente merece ver, talvez seja por isso que eu não tenha lembrança do vermelho vivo, e sim do reflexo das nuvens nas poças d’água.
*Timêmo e Tiguá significam filho e filha em tupi-guarani.

"Gigante Adormecido em Bofete SP, foto por Luciana Domingues"
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