Carta aos sobreviventes
- Rafaela Chor
- 14 de mai. de 2020
- 3 min de leitura
O ano é 2021 e há pelos menos cerca de 1,5 milhão de pessoas andando pela Avenida Paulista em São Paulo. Pessoas essas, marcadas pelo tempo, pelo medo, pela esperança. O olhar do jovem ciclista que entrega o alimento para mais uma boca que sobreviveu o ano anterior traz indício de que as coisas estão finalmente voltando ao normal, mesmo quando perdemos a noção de normalidade.
Viver de perto um evento histórico nos fez pensar na seriedade daqueles estudados por nós no colégio. Aqueles, que muitas vezes costumávamos ler como uma história que tinha começo, meio e fim. Estar no meio de um acontecimento de grande proporção nos foi assustador, e por mais que tentássemos encarar os dias de quarentena com calma, prezando por nossa saúde mental, eles não deixavam de nos assustar.
Dar as mãos nunca nos pareceu tão importante, mesmo que tal ato fosse feito de maneira virtual. Era como se no meio de tanto caos, uma ligação para a avó distante, uma mensagem enviada ao amigo ansioso, fizessem com que o mundo parasse por uns instantes como cortesia para que aquele momento pudesse ser degustado.
Os olhares agora se encontram ao passarmos uns pelos outros pela rua, algo que não acontecia há tempos. O toque passou a ser mais desejado e parece que as praças nunca foram tão utilizadas. Aos que puderam vivenciar reencontros, novos capítulos serão escritos em seus diários de bordo.
Às crianças que vivenciaram tudo aquilo que já era difícil para um adulto formado entender, nossas sinceras desculpas. Nós tentamos oferecer um ambiente seguro, porém, éramos tão inexperientes quanto vocês. Descobrimos que os adultos também sentem medo e gostariam de receber colo vez ou outra.
Descobrimos o poder dos que vestem uniformes, dos que salvam sem usar capa, dos que mantém o mundo girando sem ao menos ter o menor reconhecimento. Profissionais da limpeza, saúde, correios, do ramo alimentício, entre tantos outros, foram os responsáveis para que o mundo pudesse respirar ar puro mais uma vez. A gratidão muitas vezes pode não vir em forma de palavras, mas gestos ao redor do mundo inteiro fizeram com que tais profissionais fossem reconhecidos pelos seus incansáveis trabalhos.
O ano de 2020 foi sem dúvidas um marco histórico para exercitarmos a nossa cumplicidade e compreensão. Ao olhar fundo nos olhos daquele que também viu o terror de perto, é possível ver o processo de cicatrização e de empatia pelo que nos foi tirado, mas também oferecido. Foi oferecida a nós uma segunda chance, uma nova possibilidade de encarar a vida de maneira diferente. De agradecer por mais um dia com aquelas pessoas que por pouco tiveram suas vidas poupadas.
É a hora de investirmos na ciência, nas pesquisas, nos cargos que fizeram a diferença nesse período de pandemia, pois é inadmissível que eles continuem recebendo migalhas pelo tanto que eles já ofereceram a esta sociedade. Passou do tempo de praticarmos a empatia pelo próximo, estamos em dívida com o planeta por passarmos tanto tempo focados em nossos próprios problemas, sem olhar para a situação maior que vem crescendo e sufocando a todos pouco a pouco.
A mensagem aqui é para que possamos mudar nossos pontos de vista, entender o que aconteceu como um doloroso aprendizado que pode nos preparar para caso uma situação similar aconteça. Nada vai acalmar a dor dos que perderam tanto em tão pouco tempo. Vivemos agora um processo de recolhimento e reconstrução, e esperamos com todas as forças que isso nos fortalecerá para o as pedras que o futuro possa colocar em nossos caminhos.

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