Carta aberta ao feminino
- Rafaela Chor
- 1 de dez. de 2020
- 4 min de leitura
Há tempos venho viajando pelo meu próprio corpo, em missões curtas determinadas a explorar tudo aquilo que um dia me foi desconhecido. Entender da funcionalidade do corpo não é apenas prestar atenção em necessidades fisiológicas como respirar, apesar de nem lembrarmos de respirar fundo ao decorrer dos dias, ou em alguns casos, anos.
Ter o corpo roubado de você é um dos maiores crimes contra a humanidade, e eu acredito que toda mulher existente já sentiu o corpo roubado pelo menos uma vez na vida, ao ser objetificada por olhos terceiros que tiram de cada uma delas o brilho restante de autoestima.
Após anos de desconstrução e exercícios diários para fazer as pazes com meu corpo, fiquei completamente à vontade para falar sobre a menstruação, os hormônios, seios doloridos, cólicas menstruais incessantes, pele oleosa e alterações severas de humor.
Parece que em apenas alguns anos eu consegui retomar as rédeas da minha feminilidade. Não, eu não escrevo isso para dizer o quanto eu sinto que evoluí em relação ao assunto, mas sim para falar sobre o que me parece ser outro caso.
Há alguns dias, fui diagnosticada com endometriose. Parece que todas as paredes da casa que eu levantei com esforço para sustentar o meu feminino, desabaram ao ouvir da médica que eu teria que cortar o meu ciclo menstrual.
As lágrimas vieram aos meus olhos e me senti roubada. Roubada de todo processo que me levou a estar bem com a minha menstruação, embora as dores excruciantes. Ao ver os lábios da médica se mexendo, na minha cabeça só vinha o pensamento de me sentir menos mulher e ter minha fertilidade, a qual eu sempre me orgulhei tanto, roubada.
Eu descrevi em tantas poesias e textos a figura da mulher como um ser fértil, com o corpo em sincronia com os movimentos lunares, e de numa consulta de 40 minutos tudo isso me foi tirado, eu não era mais uma delas. Pode parecer exagero falar sobre isso com tanto pesar no peito já que existem tratamentos, mas para mim, foi um choque que me fez pensar se eu realmente cortaria minha menstruação para que a doença evitasse de se agravar.
Colocar a saúde em risco por conta de algo que me parecia ser mais uma questão de ego, hoje me soa um tanto melancólico, mas há diversos casos em que me vi na posição de me comparar com outras mulheres, medindo a feminilidade. Por que me sinto na necessidade de comparar o meu feminino ao feminino alheio? Qual é o feminino certo?
Não menstruar, não ter mais o meu útero ligado ao movimento lunar e ter a fertilidade diminuída me deixou reflexiva sobre outras questões que me incomodam, mas que eu sei que estou completamente errada. E pensando bem, é reconhecendo que estamos equivocadas que temos a chance de evoluir.
Corto o meu cabelo curto há alguns anos, após a vida toda cultivando cabelos quimicamente alterados para serem lisos, realizei a transição capilar. Já faz 3 anos dessa decisão e hoje mantenho meus cachos com certo orgulho, porém eu percebi que sempre que vejo alguma mulher com os cabelos longos, eu instantaneamente a considero mais feminina que eu.
Diga-se de passagem, que eu não acredito nesse pensamento, mas o que faz com que essas comparações aconteçam? Será que os modelos mostrados em revistas e comerciais de televisão estão tão impregnados nos nossos subconscientes a ponto de fazer com que nós surjamos com perguntas hipotéticas sem fundamento sobre o próprio corpo? Talvez a resposta seja “sim”, mas eu não posso falar pelas outras mulheres.
No meu caso, eu digo que “sim”. Eu vejo o exemplo das mulheres desejáveis, sem espinhas, sem rugas, sem cólica, com cabelos perfeitamente arrumados ao acordar, números mínimos na balança ao se preparar para um casting, e me vem a vontade de ser ao menos um pouco parecida com elas, mesmo sabendo que elas não existem.
O feminino televisivo não existe. Esses são padrões irreais, e isso não é novidade. Andei revendo vários cenários em minha mente e cheguei à conclusão de que talvez seja necessária uma reeducação do feminino. Ensinar as meninas que toda mulher menstrua, por exemplo, me parece uma questão que talvez pudéssemos aprofundar um pouco mais.
Quem sabe se nós ensinássemos que o feminino não tem a ver com o sangue menstrual, com os cabelos longos, com as unhas pintadas, com as mamas intactas, com a fertilidade em níveis altos, e com quem ela escolhe amar, quem sabe assim, a queda ao saber que uma ou mais dessas questões lhe foi comprometida seja menor, e ela possa se sentir tão empoderada quanto ela quiser.
O feminino tem a ver com a energia, com a proteção e com a irmandade. Tem a ver com o bater forte do peito para fazer a diferença e conquistar cada solo que pisar, com a voz que acalma e acalanta, e com a voz que grita por aquelas que tiveram as bocas tapadas pela sociedade. Tem a ver com o respeito, com a sororidade, com a ancestralidade e com o espírito. O resto é fisiológico.
Texto por: Rafaela Chor

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